Tema 34 do TRF4: está proibida a cessão/venda de precatórios e RPVs de créditos previdenciários na 4ª Região
Tema 34 do TRF4: cessão de precatórios previdenciários está oficialmente vedada.
A 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) fixou, em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR nº 5023975-11.2023.4.04.0000/RS, Tema 34), tese de altíssimo impacto para a advocacia previdenciária e para o mercado de compra e venda de precatórios e RPVs.
A tese firmada foi objetiva:
“É vedada, nos termos do art. 114 da Lei nº 8.213, a cessão de créditos de origem previdenciária objeto de qualquer requisição judicial de pagamento.”
Na prática, isso significa que, no âmbito do TRF4 (RS, SC e PR), não será admitida a cessão/venda de créditos previdenciários representados por precatórios ou requisições de pequeno valor (RPVs), ainda que já expedidos.
A seguir, o IEPREV reúne os principais pontos da decisão, seus fundamentos jurídicos e os reflexos para advogados previdenciaristas e segurados.
1. Contexto: por que o Tema 34 foi instaurado?
O IRDR foi instaurado de ofício pelo Desembargador Federal Márcio Antônio Rocha, diante da multiplicidade de ações discutindo a cessão de créditos previdenciários, especialmente na fase de cumprimento de sentença, com atuação intensa de fundos de investimento e empresas especializadas na compra de precatórios.
Havia divergência interna e também uma percepção de aparente mudança de entendimento no Superior Tribunal de Justiça (STJ), especialmente após o julgamento do REsp 1.896.515/RS, no qual se admitiu a cessão de precatório de natureza previdenciária.
O IRDR buscou justamente uniformizar a jurisprudência da 4ª Região sobre o tema.
2. O que exatamente o TRF4 decidiu no Tema 34?
Após amplo debate, com votos divergentes e voto-vista, prevaleceu a posição inaugurada pelo Des. Federal Osni Cardoso Filho, que resultou na tese já transcrita:
“É vedada, nos termos do art. 114 da Lei nº 8.213, a cessão de créditos de origem previdenciária objeto de qualquer requisição judicial de pagamento.”
Pontos centrais da decisão:
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A vedação atinge qualquer crédito de origem previdenciária, ainda que:
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já convertidos em precatórios; ou
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representados por RPVs;
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A tese se aplica a “qualquer requisição judicial de pagamento”, ou seja, não importa a forma (precatório/RPV), enquanto o crédito tiver natureza previdenciária, não pode ser objeto de cessão.
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A fundamentação se apoia principalmente:
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no art. 114 da Lei 8.213/91;
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na jurisprudência consolidada do STJ contrária à cessão de créditos previdenciários;
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na natureza de direito fundamental e indisponível do benefício previdenciário.
3. Art. 114 da Lei 8.213/91: o eixo central da tese
O art. 114 da Lei 8.213/91 dispõe:
“Salvo quanto a valor devido à Previdência Social e a desconto autorizado por esta Lei, ou derivado da obrigação de prestar alimentos reconhecida em sentença judicial, o benefício não pode ser objeto de penhora, arresto ou seqüestro, sendo nula de pleno direito a sua venda ou cessão, ou a constituição de qualquer ônus sobre ele (...).”
Tradicionalmente, alguns defendiam que a vedação alcançaria apenas o “benefício em si” (as parcelas vincendas pagas mês a mês), não os créditos atrasados já transformados em precatório/RPV.
O voto vencedor rebateu essa interpretação restritiva com alguns argumentos fundamentais:
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O crédito em precatório/RPV é apenas a soma de prestações do mesmo benefício (ou das diferenças de revisão), pagas com atraso.
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O fato de o pagamento se operacionalizar via precatório ou RPV não muda a natureza do crédito, que continua sendo previdenciário e alimentar.
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Se o objetivo da norma é proteger o beneficiário contra sua própria disposição patrimonial em contexto de vulnerabilidade, não faria sentido permitir a venda do “bolo” de prestações atrasadas e, ao mesmo tempo, vedar a venda de cada fatia (prestação mensal).
Resultado: o TRF4 interpretou o art. 114 de forma ampliativa e protetiva, para abranger todo crédito decorrente de benefício previdenciário, incluindo o que é pago por requisição judicial.
4. A leitura da jurisprudência do STJ: decisão isolada x entendimento dominante
O voto do Des. Osni Cardoso Filho dedica boa parte da fundamentação a demonstrar que o REsp 1.896.515/RS (que admitiu a cessão de precatório de natureza previdenciária) é decisão isolada e não representa mudança de orientação do STJ.
Ele reúne diversos precedentes – de ambas as Turmas de Direito Público – reafirmando:
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impossibilidade de cessão de créditos previdenciários com base no art. 114 da Lei 8.213/91;
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nulidade de pleno direito de cláusulas contratuais que disponham em sentido contrário;
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aplicação reiterada da Súmula 83 do STJ, justamente por existir entendimento pacificado sobre o tema.
O voto ainda menciona decisões recentes, inclusive de 2023 e 2024, em que o STJ:
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reafirma a proibição da cessão de crédito previdenciário;
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distingue expressamente a situação do REsp 1.091.443/SP (repetitivo), reconhecendo que esse precedente trata de substituição processual, e não de cessão de crédito previdenciário (logo, não serve de fundamento para relativizar o art. 114).
Em síntese: para o TRF4, o cenário do STJ continua majoritariamente contrário à cessão de créditos previdenciários – e isso reforça a tese fixada.
5. Benefício previdenciário como direito fundamental e indisponível
Outro eixo da fundamentação é constitucional e principiológico.
O voto destaca:
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A previdência social é direito social fundamental (art. 6º da CF), diretamente ligado à dignidade da pessoa humana, ao mínimo existencial e à justiça social.
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O Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo, em diversos julgados, características como:
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imprescritibilidade de parcelas vincendas em certos contextos;
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irrenunciabilidade;
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e, especialmente, a indisponibilidade do direito ao benefício, em razão de sua função de proteção existencial.
A partir dessa visão, o TRF4 conclui:
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O crédito previdenciário – ainda que em forma de precatório/RPV – não pode ser tratado como um ativo patrimonial comum, livremente negociável no mercado.
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A hipossuficiência técnica, econômica e informacional da maioria dos segurados cria campo fértil para negócios profundamente desvantajosos (deságios elevados, contratos pouco transparentes etc.).
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O art. 114 da Lei 8.213/91, então, deve ser interpretado como instrumento de proteção social reforçada, impedindo que o segurado “abra mão” do resultado de uma ação previdenciária que, muitas vezes, foi sua única via para recompor anos de renda não recebida.
6. Relação com o art. 100, § 13, da Constituição Federal (EC 62/2009)
A Emenda Constitucional 62/2009 incluiu no art. 100 da CF a possibilidade de cessão de créditos em precatórios, de forma ampla:
“O credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros (...).” (art. 100, § 13, CF).
Aqui está o ponto sensível: se a CF autoriza a cessão em geral, como justificar a manutenção do art. 114 da Lei 8.213/91?
O TRF4 resolve essa aparente antinomia por meio de uma técnica de hierarquização material com base em princípios:
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De um lado, há uma norma constitucional geral, que permite cessão de créditos em precatórios em sentido amplo.
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De outro, há uma norma infraconstitucional especial (art. 114 da Lei 8.213/91), que protege créditos de natureza previdenciária, amparada por princípios superiores de proteção social (dignidade da pessoa humana, mínimo existencial, redução das desigualdades).
O voto sustenta que:
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Nem sempre a norma superior (constitucional) prevalece, quando uma norma inferior especial concretiza de modo mais adequado e protetivo princípios de maior hierarquia (como a dignidade da pessoa humana e a proteção social).
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Nesse cenário, o que deve prevalecer é a finalidade de proteção do segurado – e não um enfoque patrimonialista sobre o crédito.
Conclusão: o art. 100, § 13, CF, não revogou nem esvaziou o art. 114 da Lei 8.213/91 no tocante a créditos previdenciários; ao contrário, convivem, sendo este último regra especial, de índole protetiva, que limita a cessão no campo previdenciário.
7. Efeitos práticos (TRF4)
7.1. Para segurados e sucessores
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Não é possível vender/ceder precatórios ou RPVs de natureza previdenciária perante a Justiça Federal da 4ª Região.
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Instrumentos particulares ou públicos de cessão que tenham como objeto crédito previdenciário:
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tendem a ser considerados nulos de pleno direito;
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podem não ser homologados pelo juízo da execução.
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Mesmo em caso de precatórios já expedidos, enquanto o crédito decorrer de benefício previdenciário, a tese impede a cessão.
7.2. Para advogados previdenciaristas
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É recomendável orientar com clareza os clientes sobre:
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a impossibilidade de cessão/venda de precatórios e RPVs previdenciários no TRF4;
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os riscos de negócios celebrados à margem do processo, com promessa de antecipação de valores.
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Nos cumprimentos de sentença, é importante:
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impugnar pedidos de habilitação de cessionários, quando relacionados a créditos previdenciários;
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invocar expressamente a tese do Tema 34/TRF4 e o art. 114 da Lei 8.213/91.
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Para contratos já firmados com empresas de cessão de crédito:
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a situação é delicada e exige análise caso a caso;
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a tese do IRDR tende a reforçar a nulidade da cessão, com discussão possível sobre:
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devolução de valores eventualmente recebidos;
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responsabilidade civil;
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efeitos perante terceiros de boa-fé.
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7.3. Para fundos de investimento e empresas de compra de precatórios
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A decisão impõe fortíssima restrição à atuação no segmento de créditos previdenciários na 4ª Região.
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A estratégia de aquisição de precatórios e RPVs previdenciários perante o TRF4 terá de ser totalmente revista, sob pena de:
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não conseguir habilitar-se como credor no processo;
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ver reconhecida a nulidade da cessão;
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enfrentar litígios com segurados e herdeiros.
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8. Âmbito de aplicação da tese: onde o Tema 34 TRF4 é vinculante?
Por ser IRDR julgado pela 3ª Seção do TRF4, a tese:
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Vincula os órgãos fracionários do próprio TRF4 (Turmas previdenciárias);
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Vincula os juízos federais das Seções Judiciárias do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná (art. 985 do CPC).
Na prática, isso significa que:
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Juízes federais de 1º grau da 4ª Região devem aplicar a tese do Tema 34 em casos análogos;
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Turmas do TRF4 não podem se afastar da tese, salvo superação formal (overruling) ou decisão posterior de instância superior (STJ/STF) com caráter vinculante e específico sobre a mesma matéria.
9. Perguntas frequentes (FAQ) – “Cessão de precatórios previdenciários no TRF4”
1. Posso vender meu precatório previdenciário no TRF4?
No âmbito do TRF4 (RS, SC, PR), não. A tese do Tema 34 afirma ser vedada, com base no art. 114 da Lei 8.213/91, a cessão de créditos de origem previdenciária objeto de qualquer requisição judicial de pagamento.
2. A decisão vale também para RPV previdenciária?
Sim. A tese fala em “qualquer requisição judicial de pagamento”, o que abrange precatórios e RPVs de natureza previdenciária.
3. E se o contrato de cessão já foi assinado com uma empresa?
O IRDR indica que a cessão é nula de pleno direito, o que abre espaço para discussão judicial. Contudo, os efeitos concretos (devolução de valores, responsabilidades etc.) dependem da análise específica de cada caso.
4. E em outras regiões (TRF1, TRF2, TRF3, TRF5, TRF6)?
O Tema 34 vincula apenas o TRF4 e os juízos federais da 4ª Região. Em outras regiões, a orientação pode ser distinta, embora a jurisprudência dominante do STJ siga – até o momento – contrária à cessão de créditos previdenciários.
5. A tese pode mudar no futuro?
Como toda orientação jurisprudencial, pode ser revista se sobrevier decisão vinculante do STJ (repetitivo) ou do STF (tema de repercussão geral) em sentido diverso. Até lá, a advocacia previdenciária na 4ª Região deve trabalhar com a vedação da cessão.
10. Conclusão: o que o Tema 34 do TRF4 sinaliza para o sistema de proteção previdenciária?
O julgamento do Tema 34 – IRDR nº 5023975-11.2023.4.04.0000 representa uma afirmação robusta do caráter protetivo do Direito Previdenciário, ao:
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reforçar a indisponibilidade do crédito previdenciário, mesmo quando convertido em precatório/RPV;
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reafirmar a centralidade do art. 114 da Lei 8.213/91 como mecanismo de proteção do segurado;
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alinhar-se à jurisprudência dominante do STJ, que vem reiterando a nulidade da cessão de créditos previdenciários;
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colocar um freio à mercantilização do benefícios previdenciários, em que segurados vulneráveis vendem, com alto deságio, créditos que representam anos de subsistência atrasada.
Para a advocacia previdenciária, o recado é claro:
na 4ª Região, cessão/venda de precatórios e RPVs de créditos previdenciários não é juridicamente viável, devendo os profissionais orientar seus clientes à luz dessa nova realidade e utilizar a tese do Tema 34 do TRF4 como argumento central em ações e cumprimentos de sentença que envolvam tentativas de cessão desses créditos.