Julgamento no âmbito do TRF4 defende que a realização de “bicos e atividades precárias” não descarteriza, por si só a condição de segurada especial  

Descubra como o julgamento em perspectiva de gênero está transformando o reconhecimento de direitos previdenciários das trabalhadoras rurais e seguradas especiais. Leia mais sobre decisões históricas e os impactos sociais no Direito Previdenciário.

O Relator, Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz aplicou a Cartilha de Julgamento sob perspectiva de Gênero na análise do fato concreto, conforme preconiza a Resolução CNJ n. 492/2023.

No caso concreto, cotejando as condições socioculturais do grupo familiar, houve o reconhecimento de que além do desempenho das atividades rurícolas da segurada especial, esta se incumbia dos afazeres domésticos para viabilizar o trabalho urbano que era realizado pelo cônjuge, além do cuidado com os filhos e idosos.

É importante considerar que os efeitos do protagonismo feminino no exercício do trabalho de cuidados, que não é remunerado, não anula os seus esforços na participação do sustento familiar. Essa realidade impacta de forma muito mais intensa as mulheres campesinas, as seguradas especiais, que historicamente sofrem para documentar o exercício da sua profissão.

A Iª Jornada de Seguridade Social, que reuniu diletos juristas do direito previdenciário e representantes do Poder Judiciário, AGU, MPF e que contou com representantes do IEPREV, aprovou alguns Enunciados, dentre eles, o de número 47, que se coaduna com o pensamento do Desembargador, a saber:

ENUNCIADO 47: Em ações judiciais que versem sobre benefícios previdenciários, especialmente quando figurarem no polo ativo mulheres seguradas trabalhadoras rurais, donas de casa, empregadas domésticas e faxineiras, na valoração da prova, inclusive de laudos médicos, além da observância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, previsto na Resolução CNJ n. 492/2023, as julgadoras e os julgadores devem rechaçar conclusões que tratem das atividades domésticas e de cuidado como improdutivas ou como tarefas leves, isto é, como se não demandassem esforço físico médio ou intenso.

O Enunciado, a Resolução CNJ n. 492/2023, assim como a Decisão abaixo, são marcos históricos da ciência jurídica previdenciária, no reconhecimento da importância daquilo que a sociologia denomina de trabalho reprodutivo não remunerado (HIRATA, KERGOUAT, 2007)1 e que é um instrumento de sujeição, que perpetua as desigualdades entre mulheres e homens nas relações trabalhistas e previdenciárias. Passaremos à análise do Acórdão:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR IDADE HÍBRIDA. TRABALHO RURAL E URBANO JULGAMENTO EM PERSPECTIVA DE GÊNERO. 1. É devida a aposentadoria por idade mediante conjugação de tempo rural e urbano durante o período aquisitivo do direito, a teor do disposto na Lei nº 11.718, de 2008, que acrescentou o § 3º ao art. 48 da Lei nº 8.213, de 1991, desde que cumprido o requisito etário de 60 anos para mulher e de 65 anos para homem. 2. Quando o segurado comprova judicialmente o efetivo labor rural, na qualidade de segurado especial, e encontram-se satisfeitos os demais requisitos legais, tem ele direito à concessão do benefício de aposentadoria por idade rural. 3. Hipótese em que, a despeito da renda urbana do cônjuge inferior a 3 (três) salários mínimos, o trabalho rural da segurada era fundamental para a manutenção do sustento familiar, especialmente no contexto de inflação vivenciada nesta década, que tanto prejudica as famílias mais humildes do Brasil. Ademais, o adjutório da autora à economia familiar não pode ser considerado apenas em função dos valores auferidos com a produção agrícola, mas sim a partir de uma análise mais ampla, que leva em consideração a fundamentalidade do papel da trabalhadora rural para viabilizar o próprio trabalho do cônjuge, notadamente na zeladoria da casa, com inúmeros afazeres domésticos, e no amparo dos filhos na primeira infância, dada a absoluta inexistência de escolas de educação infantil na zona rural. 4. De mais a mais, não é possível punir duplamente as trabalhadoras rurais ao sonegar a adequada proteção previdenciária, justamente em face da desigualdade salarial que impera no país entre homens e mulheres. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça preconiza o julgamento em perspectiva de gênero em matéria previdenciária: "as julgadoras e os julgadores devem considerar estudos que apontam as trabalhadoras rurais como responsáveis por inúmeros lares e agentes que empregam o seu rendimento prioritariamente para o sustento das famílias, e não em gastos pessoais. Assim, a realização de atividades precárias e "bicos" (manicure, diarista etc.) necessários à subsistência não deve ser circunstância que, por si só, afasta a qualidade de segurada especial das mulheres;". 5. A Previdência Social, portanto, desempenha papel essencial na preservação de direitos de lavradoras e lavradores no campo para assegurar o desenvolvimento da agricultura familiar, cuja diversidade de culturas, assegura a alimentação do povo brasileiro em alternativa à agropecuária, consabidamente marcada pela monocultura de exportação. Logo, não é razoável privilegiar uma exegese tão restritiva quando nem o próprio legislador ordinário incorreu em tamanho rigor. (TRF4, AC 5002606-12.2021.4.04.7216, NONA TURMA, Relator PAULO AFONSO BRUM VAZ, juntado aos autos em 25/06/2024)

Ao estabelecer paridade valorativa entre o trabalho masculino e feminino, ainda que o desempenho dessa atividade se dê numa jornada mais reduzida, ou ainda, que se faça necessária a complementação da renda com o exercício de “bicos ocasionais” o Desembargador demonstra uma sensibilidade à realidade social que atinge as famílias brasileiras urbanas e rurais.

Além disso, não perpetua o mito e senso comum de que o trabalho da segurada especial é decorrente e acessório do trabalho de um segurado “arrimo de família” do sexo masculino. Trata-se de um paradigma decisório que nos permite superar eventuais dificuldades probatórias e acalenta tantas trabalhadoras campesinas ao enxergar a força da sua contribuição laborativa em favor de toda a sociedade.

Ocorre que não somente isso se destaca no Acórdão. Há o reconhecimento de que embora haja uma atividade principal que oriente as categorias de segurados da previdência social e por conseguinte, a aplicação da norma na concessão de benefícios, as rendas oriundas do trabalho no contexto atual, minguaram a ponto de obrigar trabalhadores urbanos e rurais a buscar o reforço de sua renda, com pequenos bicos, que não descaracterizam a sua atividade principal e não devem ser consideradas para a negativa dos benefícios postulados.

Neste sentido, o Acórdão cumpre uma dupla função: Definir de forma justa um conflito jurídico e mostrar que o Julgador conhece, é atento e se sensibiliza com o contexto social em que se inserem as seguradas brasileiras, o seu papel nos núcleos familiares, desbravando os meandros da burocracia legislativa que sonega, soterra direitos e se torna instrumento de perpetuação de pobreza e desigualdades.

1 HIRATA, Helena; KERGOUAT, Daniéle. Novas Configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Fátima Murad (trad). Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007.

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