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 ASPECTOS PROCESSUAIS E PROCEDIMENTAIS NO NOVO REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL











Marco Aurélio Serau Junior[1]

Roberto de Carvalho Santos[2]

 

 

O recém publicado Decreto 10.410/2020 altera o Decreto 3.048/99 (RPS – Regulamento da Previdência Social), atualizando-o a partir de muitas leis novas que haviam sido publicadas nos últimos anos e buscando, também, sua compatibilização ao texto da Emenda Constitucional 103/2019 (Reforma Previdenciária).

 

Nesta nota técnica, abordaremos algumas das principais mudanças no PAP – Processo Administrativo Previdenciário que foram introduzidas pelo Decreto 10.410/2020.

 

Foram introduzidas algumas mudanças nas atribuições do CRPS, mas estas apenas externalizam mudanças de competência que haviam sido introduzidas pela Lei 13.846/2019.

 

São relevantes algumas alterações no fluxo do processo administrativo impostas ao artigo 176 do Decreto 3.0484/99, as quais podem ter diversos reflexos procedimentais e também quanto ao processo judicial.

 

Para melhor compreensão do que vamos discutir segue abaixo a transcrição parcial do mencionado dispositivo, já com a nova redação:

 

Art. 176.  A apresentação de documentação incompleta não constitui, por si só, motivo para recusa do requerimento de benefício ou serviço, ainda que seja possível identificar previamente que o segurado não faça jus ao benefício ou serviço pretendido.

§ 1º Na hipótese de que trata o caput, o INSS deverá proferir decisão administrativa, com ou sem análise de mérito, em todos os pedidos administrativos formulados, e, quando for o caso, emitirá carta de exigência prévia ao requerente.

§ 2º Encerrado o prazo para cumprimento da exigência sem que os documentos solicitados tenham sido apresentados pelo requerente, o INSS:

I - decidirá pelo reconhecimento do direito, caso haja elementos suficientes para subsidiar a sua decisão; ou

II - decidirá pelo arquivamento do processo sem análise de mérito do requerimento, caso não haja elementos suficientes ao reconhecimento do direito nos termos do disposto no art. 40 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999.

§ 3º Não caberá recurso ao CRPS da decisão que determine o arquivamento do requerimento sem análise de mérito decorrente da não apresentação de documentação indispensável ao exame do requerimento.

§ 4º Caso haja manifestação formal do segurado no sentido de não dispor de outras informações ou documentos úteis, diversos daqueles apresentados ou disponíveis ao INSS, será proferida a decisão administrativa com análise de mérito do requerimento.

§ 5º O arquivamento do processo não inviabilizará a apresentação de novo requerimento pelo interessado, que terá efeitos a partir da data de apresentação da nova solicitação.

§ 6º O reconhecimento do direito ao benefício com base em documento apresentado após a decisão administrativa proferida pelo INSS considerará como data de entrada do requerimento a data de apresentação do referido documento.

§ 7º O disposto neste artigo aplica-se aos pedidos de revisão e recursos fundamentados em documentos não apresentados no momento do requerimento administrativo e, quanto aos seus efeitos financeiros, aplica-se o disposto no § 4º do art. 347

 

Em relação ao processo administrativo, deve-se destacar duas situações: a) a impossibilidade de interposição de recurso administrativo nas “decisões administrativas sem exame de mérito” (art. 176, § 3º), e b) alteração da DER no caso de novo pedido administrativo (art. 176, § 5º).

 

O impedimento à interposição de recursos administrativos parece configurar clara impropriedade, seja à luz do princípio do devido processo legal (art. 5º, LVI, da Constituição Federal), seja à luz do art. 56, da Lei 9.784/99, cuja redação se encontra abaixo:

 

Art. 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito.

 

A simples leitura do texto legal faz ver que haverá sempre o direito ao recurso administrativo, percebendo-se que extrapolou sua hierarquia normativa esse dispositivo contido no Decreto 10.410/2020.

 

No segundo ponto mencionado, é importante destacar que, embora a nova redação do Decreto 3.048/99 não impeça novo requerimento administrativo (nem poderia, diante do direito de petição, previsto no art. 5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal), causa prejuízo em relação a eventuais atrasados devidos aos segurados e seguradas, pois a aposentação terá como DIB o segundo momento e não aquele primeiro requerimento administrativo.

Ao que nos parece, essa disposição é ilegal, à luz do art. 105, da Lei 8.213/91, e mesmo a partir da perspectiva constitucional do direito adquirido, pois a vinda superveniente de documentação hábil à demonstração do direito não afasta o fato de que este direito já estaria constituído desde momento prévio.

 

Daremos atenção agora aos possíveis desdobramentos judiciais do art. 176 do Decreto 3.048/99, com redação dada pelo Decreto 10.410/2020.

 

É interessante notar que, nesse ponto, a nova redação do art. 176 do RPS adota o conteúdo trazido pela IN – Instrução Normativa 102, de 14.8.2019, que acrescentou alguns parágrafos ao artigo 678 da IN 77/2015, que é uma espécie de consolidação dos atos administrativos que devem ser observados pelos servidores do INSS. Veja-se o teor do que foi acrescido pela IN 102/2019:

 

Art. 678.

(...)

§ 7º Esgotado o prazo para cumprimento da exigência sem que os documentos solicitados pelo INSS tenham sido apresentados pelo segurado requerente, e em havendo elementos suficientes ao reconhecimento do direito, o processo será decidido neste sentido, observado o disposto neste Capítulo.

§ 8º Na hipótese do parágrafo anterior, não havendo elementos que permitam o reconhecimento do direito ao segurado, o requerimento será encerrado sem análise do mérito, por desistência do pedido, após decorridos 75 (setenta e cinco) dias da ciência da referida exigência.

§ 9º O encerramento do processo sem análise do mérito, por desistência do pedido, não prejudica a apresentação de novo requerimento pelo interessado, que terá efeitos a partir da data da nova solicitação.

 

A IN 102/2019 criou uma figura de “desistência tácita” do requerimento administrativo, pois passou a tratar desta maneira os processos administrativos em que não houvesse a apresentação tempestiva da documentação requerida pelo INSS em carta de exigências.

 

O exame do enquadramento dessa situação como se fosse uma “desistência tácita” ou, agora, uma possibilidade de arquivamento do requerimento administrativo, deve ser efetuado não em virtude de preciosismo acadêmico, mas por conta dos vários e relevantes aspectos processuais que podem ser verificados.

 

Não se pode desprezar que exista a figura jurídica da desistência do processo administrativo, conforme consta da redação do art. 40, da Lei 9.784/99, que disciplina o processo administrativo federal:

 

Art. 40. Quando dados, atuações ou documentos solicitados ao interessado forem necessários à apreciação de pedido formulado, o não atendimento no prazo fixado pela Administração para a respectiva apresentação implicará arquivamento do processo.

 

A norma que cuida do Processo Administrativo efetivamente possibilita o arquivamento dos requerimentos administrativos quando ausente apresentação de documentação por parte do interessado.

 

Porém, indagamos se esse é o melhor encaminhamento para a análise do Processo Administrativo Previdenciário, que atende um público específico, com demandas bem específicas e particularidades socioeconômicas que os colocam em situação de vulnerabilidade processual.

 

Essas situações de arquivamento e desistência tácita do processo administrativo previdenciário, assim como a perspectiva de anuência do segurado com a ideia de que não disporia de outras informações ou documentos úteis à análise do caso (art. 176, § 4º) podem implicar em limitações à configuração do interesse processual e obstar ou restringir o acesso à jurisdição. Conforme o art. 17, do CPC:

 

“Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade.”

 

Na esfera previdenciária interesse processual possui extrema relevância e contornos bem precisos estabelecidos pelo STF no RE 631.240, julgado na sistemática da repercussão geral:

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO E INTERESSE EM AGIR.

1. A instituição de condições para o regular exercício do direito de ação é compatível com o art. 5º, XXXV, da Constituição. Para se caracterizar a presença de interesse em agir, é preciso haver necessidade de ir a juízo.

2. A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise. É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio requerimento não se confunde com o exaurimento das vias administrativas.

3. A exigência de prévio requerimento administrativo não deve prevalecer quando o entendimento da Administração for notória e reiteradamente contrário à postulação do segurado.

4. Na hipótese de pretensão de revisão, restabelecimento ou manutenção de benefício anteriormente concedido, considerando que o INSS tem o dever legal de conceder a prestação mais vantajosa possível, o pedido poderá ser formulado diretamente em juízo – salvo se depender da análise de matéria de fato ainda não levada ao conhecimento da Administração –, uma vez que, nesses casos, a conduta do INSS já configura o não acolhimento ao menos tácito da pretensão.

(...)

9. Recurso extraordinário a que se dá parcial provimento, reformando-se o acórdão recorrido para determinar a baixa dos autos ao juiz de primeiro grau, o qual deverá intimar a autora – que alega ser trabalhadora rural informal – a dar entrada no pedido administrativo em 30 dias, sob pena de extinção. Comprovada a postulação administrativa, o INSS será intimado para que, em 90 dias, colha as provas necessárias e profira decisão administrativa, considerando como data de entrada do requerimento a data do início da ação, para todos os efeitos legais. O resultado será comunicado ao juiz, que apreciará a subsistência ou não do interesse em agir.

 

Em uma perspectiva extremamente formalista da jurisprudência, pautada pela estrita legalidade, e que infelizmente não é estranha ao Direito Previdenciário, vislumbra-se risco de que se alegue a inexistência do interesse processual nessas hipóteses envolvendo decisões de arquivamento de processos administrativos previdenciários, sem análise de mérito, bem como aquelas em que o segurado afirme que não possui informações ou documentos pertinentes aos fatos previdenciários que pretende demonstrar.

 

São estas nossas considerações preliminares em torno dos aspectos procedimentais e processuais trazidos pelo Decreto 10.410/2020, que alterou o RPS – Regulamento da Previdência Social.

 

 

[1] Professor da graduação e do Mestrado da UFPR - Universidade Federal do Paraná, nas áreas de D. Previdenciário e D. do Trabalho. Doutor e Mestre em D. Humanos (USP - Universidade de São Paulo).

 

[2] Presidente do Instituto de Estudos Previdenciários - IEPREV. Advogado especialista em Direito Previdenciário; Professor de Pós-graduação em Direito Previdenciário; Presidente da Comissão de Direito Previdenciário - Regime de Previdência Complementar da OAB/MG; Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/SP; Professor e Coordenador do Curso de Pós Graduação em Direito Previdenciário do IEPREV. Pós-Graduado em Direito Previdenciário pela UNIG e em Regime Próprio de Previdência Social pela Universidade Cândido Mendes. Sócio fundador da Sociedade de Advogados Roberto de Carvalho Santos atuante desde o ano de 2002. Graduado em Direito pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-servidor público efetivo da Seção Judiciária de Minas Gerais (Anos 1999 a 2002). Professor de Pós-Graduação em diversas instituições de ensino superior.