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COVID-19 não é doença ocupacional somente pelo fato do indivíduo estar trabalhando

A decisão do STF sobre o artigo 29 da MP 927 ainda vem causando polêmica e muitas dúvidas sobre a possibilidade da COVID-19 ser ou não considerada como doença ocupacional.
 

Vamos entender a situação. O artigo 29 da MP927 tinha a seguinte redação: 
 

Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
 

O STF entendeu, por maioria de votos, que este artigo era inconstitucional, resolvendo por suspender a eficácia de tal dispositivo legal.
 

Qual o efeito disso? Como a lei especial não trata mais desta questão, temos que buscar o enquadramento na lei geral, que no caso da doença ocupacional, são os artigos 19 e seguintes da Lei 8213/91.
 

Muitos passaram a divulgar, inclusive em grandes veículos da mídia, que o STF agora reconhecia a COVID-19 como doença ocupacional.
 

Entendo tal afirmação um equívoco, uma vez que a questão decidida pelo STF se refere apenas ao ônus da prova.
 

A legislação previdenciária estabelece um sistema de caracterização de relação causal baseada em presunção relativa. Isto significa que o INSS indica a existência de uma doença ocupacional baseado em presunção estabelecida em lei, as listas contidas no anexo II do Decreto 3048/99.
 

É claro que o Perito Médico Federal tem autonomia para afastar esta presunção quando da perícia médica no INSS, porém isto precisa ser justificado. Trata-se de uma presunção relativa, cabendo prova em contrário.
 

A intenção do legislador no artigo 29 da MP 927 era justamente acabar com essa presunção relativa nos casos de COVID-19. A exceção seria a caracterização desta doença como doença ocupacional, imputando o ônus da prova ao trabalhador. O STF entendeu que esse ônus era muito oneroso ao trabalhador e suspendeu a eficácia do dispositivo.
 

Caso prevalecesse o estabelecido pelo artigo 29 da MP 927 teríamos o ônus para o trabalhador, agora, com a suspensão deste dispositivo, retornamos a regra geral, uma presunção relativa com ônus para as empresas.
 

Contudo, isso não significa, em absoluto, que qualquer caso de COVID-19 em trabalhador será considerado como doença ocupacional.
 

Quando o Perito Médico Federal entender que existe o nexo técnico caberá a empresa provar que este nexo inexiste, esta é a questão central da decisão do STF, a quem cabe o ônus da prova.
 

Para meu espanto, leio publicações de médicos do trabalho afirmando que basta o trabalhador ter que sair de sua residência para trabalhar que já haveria a caracterização do COVID-19 como doença ocupacional!
 

Acredito que a primeira coisa que temos que considerar, às vezes esquecemos disto, é que a conceituação de acidente de trabalho/doença ocupacional não é médica, mas sim jurídica.
 

Não é acidente de trabalho / doença ocupacional o que eu acho, como médico, que deva ser, mas sim o que a lei estabelece que é.
 

Sem entender essa questão básica vamos ver absurdos como este.  Afirmar que qualquer trabalhador que adquirir COVID-19 e estiver trabalhando fora de seu domicílio terá automaticamente reconhecida a doença como sendo uma doença ocupacional é ignorar o conceito legal de acidente de trabalho / doença ocupacional.
 

Não podemos admitir que questões ideológicas influenciem esta avaliação, seja para caracterizar o acidente de trabalho ou para descaracterizá-lo. A questão é técnica!
 

Vamos ao estudo técnico do tema.
 

A COVID-19 é uma doença altamente contagiosa, é o que os estudos dizem, podendo ser adquirida em qualquer lugar. Podemos ter contato com o vírus na rua, em casa, em supermercados, em farmácias, em transporte público, na embalagem do delivery, no elevador do prédio e no trabalho. Isto nos indica que não se trata de um vírus que só existe no trabalho!
 

Os defensores da tese de que basta o empregador exigir que o trabalhador saia de sua casa para a eventual infecção por COVID-19 ser considerada como do trabalho ignoram que a pessoa em sua residência também tem risco de adquirir a doença.
 

Ou as pessoas em home office deixam de se alimentar, de ter que ir numa farmácia ou de comprar itens básicos para sua sobrevivência? A pessoa não utiliza elevador, não coloca o lixo para fora de sua residência e não tem contato com objetos e pessoas que possam estar contaminados?
 

E mais, qual dispositivo legal permite a caracterização de todo caso de COVID-19 como sendo doença ocupacional?
 

A COVID-19 não está prevista na lista A, B ou C do anexo II do Decreto 3048/99. E nem poderia, uma vez que tratamos de uma doença nova que tem pouco mais de 5 meses de existência. Estas listas foram publicadas em épocas em que a COVID-19 não existia!
 

Mas, então, você está afirmando que a COVID-19 nunca será considerada como doença ocupacional? Óbvio que não!
 

Só quero chamar a atenção que a legislação deve ser aplicada, não “achismos” sobre o tema. Estamos tratando de uma questão técnica importante, não cabendo militância sobre o tema.
 

A legislação prevê em seu artigo 20, parágrafo segundo, da lei 8213/91 que: 

Art. 20.

  • 2º Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.
 

Estamos diante do nexo técnico individual. Quando não existe previsão nas listas oficiais da situação como sendo decorrente do trabalho, cabe ao Perito Médico Federal determinar, no caso concreto, se existe o nexo técnico considerando o risco a que o trabalhador esta exposto em seu labor, como diz a legislação, “condição especial em que o trabalho é executado”.
 

Entendo também que, diante da situação nova apresentada que não poderia ser prevista pelo legislador, poderíamos, por analogia, utilizar o dispositivo legal que trata de endemias. Vejamos sua redação:
 

Artigo 20.

  • 1º Não são consideradas como doença do trabalho:
  1. d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
 

Importante ressaltar que a COVID-19 não é uma endemia, caso fosse não afirmaria por interpretação analógica. Contudo, estamos diante de uma epidemia diferente daquelas que estávamos acostumados.
 

A diferença está no fato dela poder ser adquirida em qualquer situação. O conhecimento científico sobre a doença e sua forma de transmissão ainda está sendo desenvolvido, não há garantia de nada e quase todos casos sequer é possível identificar como a pessoa adquiriu a doença.
 

O uso por analogia deste dispositivo é possível e interessante pelo fato de tratar muito bem, de forma clara, a questão do risco, destacando que a natureza do trabalho pode determinar a existência da relação entre a doença e o trabalho.
 

Só podemos afirmar que a COVID-19 é doença ocupacional quando o trabalho, por sua natureza, expor o trabalhador a risco maior, acima do risco ordinário.
 

Não há ninguém na face da Terra que esteja sem risco de adquirir COVID-19, mas alguns trabalhadores estão expostos a risco aumentado. Está é a questão.
 

O tratamento dado a doença endêmica é exatamente este. Um morador de uma determinada região onde existe uma doença endêmica tem risco de adquiri-la, porém alguns trabalhos, por sua natureza, expõe o trabalhador a risco aumentado permitindo o nexo técnico. Por isso entendo que a aplicação por analogia deste dispositivo já existente na legislação é uma hipótese plausível.
 

Seja por analogia a doença endêmica ou por nexo técnico individual, não é todo caso de COVID-19 em trabalhador que deverá ser considerado como doença ocupacional. Cada caso deve ser avaliado individualmente, generalizar a questão é sensacionalismo.
 

Precisamos entender que as situações previstas como acidente de trabalho/doença ocupacional estão na legislação.
 

Doença ocupacional não é aquilo que eu quero, mas sim o que a lei prevê que é!
 

Autor: Dr. João Baptista Opitz Neto – Médico do Trabalho, Mestre em Bioética e Biodireito pela UMSA/AR; Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas; Especialista em Ergonomia; Perito Judicial / Assistente Técnico nas áreas trabalhista, cível e previdenciária. Autor do livro “Perícia Médica no Direito” (Editora Rideel); Colunista do portal SaudeOcupacional.org; Professor e Palestrante nas área de Pericia Médica, Medicina do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho; Diretor do Instituto Paulista de Higiene, Medicina Forense e do Trabalho.
 

Obs.: o texto acima é de autoria do colunista João Baptista Opitz Neto, e não reflete a opinião institucional do SaudeOcupacional.org.


Fonte: Saúde Ocupacional