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A previdência do Chile e o “exagero do neoliberalismo”

Os economistas Jonathan D. Ostry, Prakash Loungani e Davide Furceri surpreenderam o mundo, esta semana, ao publicarem artigo na revista Finance & Development, editada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), questionando os exageros dos 30 anos neoliberais – 1978-2008[1]. Eles destacam o fato, constatado pelo próprio FMI e hoje já bastante cristalizado em todo o planeta – dos Estados Unidos ao país mais pobre da África Sub-saariana – de que o crescimento econômico desse período, de forma alguma, significou aumento do bem-estar da população. Pelo contrário, ampliou a desigualdade social e colocou em risco a expansão econômica estável. Em outras palavras, o crescimento não se constituiu em desenvolvimento.

 

Eles começam o artigo citando o Chile. O país latino-americano foi a vedete das políticas neoliberais dos anos 1990. Foi aclamado por Milton Friedman, o papa dos economistas neoliberais, como um “milagre econômico”. O Chile foi uma espécie de laboratório do Consenso de Washington. Um dos “testes” mais festejados e aclamados pelos economistas neoliberais foi a privatização completa do sistema de previdência social patrocinada pelo general Pinochet. Como se sabe, o sistema público foi fechado, o governo incentivou a transferência dos trabalhadores para o sistema privado e assumiu o período de transição (quando a receita é reduzida e o Estado arca com os custos residuais dos já aposentados até a morte). Os jovens entrantes no mercado de trabalho (a partir de 1981) passaram a ter a obrigação de contribuir para o sistema privado.

 

No meu livro “Viver Muito” (Ed. Leya, 2010), relato a reforma chilena e também a contra-reforma de 2008, promovida por Michele Bachelet, quando a privatização mostrou a que veio: deixou 1,2 milhão de chilenos sem cobertura da previdência. Simplesmente esses trabalhadores foram excluídos do sistema depois de sofrerem com o desemprego (bastante alto nas décadas de 1980 e 1990). Outros efeitos nefastos foram a concentração do mercado de administradoras de fundos de pensão que passaram a cobrar altas taxas de administração e carregamento entre muitas falhas de mercado jamais previstas pela ditadura de Pinochet, obviamente também nunca discutidas com a sociedade. Em 2008, sobrou para o Estado criar um Pilar Solidário para arcar, mais uma vez, com a seguridade social desses 8% da população que ficaram à mingua na velhice. Este retorno do Estado, por necessidade emergencial, reduziu consideravelmente o efeito fiscal da privatização da previdência.

 

O mesmo ocorre com o sistema de saúde chileno. Não houve uma privatização total como na previdência. Mas a criação de um sistema misto. A saúde, portanto, não é universal e gratuita. Apenas aqueles muito pobres (com teste de pobreza) têm direito à gratuidade. O sistema foi constituído a partir de uma dependência exagerada da cobertura ao vinculo empregatício (como ocorre nos Estados Unidos).  Os reformadores impuseram uma escolha aos trabalhadores. Eles são descontados, igualmente, no sistema público (Fonasa) ou no privado (Isapres), em 7% da renda ou salário. O desemprego, porém, coloca uma grande parte, em risco. Atualmente, só 25% da população conseguem pagar a cota durante um ano inteiro. As interrupções são constantes. Logo, a cobertura para quem optou pelo sistema privado é imediatamente interrompida.   

 

O grande problema, na questão do envelhecimento populacional, é que os planos privados no Chile impõem riscos de sexo e de idade. Como o parâmetro de preço não é um sistema de saúde gratuito, como no Brasil, os planos são muito caros. O mercado, então, começa a criar milhares de modelos de planos com maior ou menor cobertura. A concentração do mercado, porém, é grande. São apenas seis empresas (gigantes) no setor. No fim das contas, o governo acaba arcando com os maiores custos de saúde para atender à população vulnerável e de baixa renda. Sobretudo os tratamentos de alta complexidade. Os governos de Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michele Bachelet ampliaram os recursos para a saúde, enquanto o sistema privado aumentou o lucro, mesmo vendo sua clientela diminuir em 30% a partir dos anos 2000 devido ao alto custo dos planos.

 

Trinta e cinco anos depois da reforma da previdência, o balanço continua perverso para os trabalhadores chilenos. De acordo com reportagem da Bloomberg, as mulheres chegam aos 60 anos acumulando menos de 110 mil reais de poupança, em média, em suas contas de previdência privada. Os homens, aos 65 anos, conseguem guardar em torno de 200 mil. Como a expectativa de vida média é de 80,5 anos – a maior da América Latina -,  podemos considerar que a previsão de benefício de aposentadoria do Chile, por mês, em média, é equivalente à metade de um salário mínimo brasileiro (R$ 440,00).

 

A justificativa para a privatização da previdência, na década de 1980, era de que resolveria o problema fiscal do Chile e abriria o mar do crescimento econômico do país. Não se tem notícia, três décadas depois, de que o Chile viveu a experiência do catching up (alcance do nível econômico dos países desenvolvidos). A doença holandesa em um país dependente de uma só commodity, o cobre, continua crônica. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Chile ocupa o segundo lugar em desigualdade social entre os seus 35 membros. A renda dos 10% mais ricos é 26,5 vezes mais elevada do que a dos 10% mais pobres. A média da OCDE é de 9,5 vezes.

 

Durante a década de 1980 e, principalmente, a década de 1990, o FMI recomendou estas mudanças econômicas para a América Latina. Os economistas críticos alertavam para a evidente concentração de renda proporcionada por este receituário no longo prazo. Nunca foram ouvidos. Eram rotulados como “corporativistas”, “defensores do atraso”, no Brasil, “viúvas da Era Vargas”, etc. Estas reformas foram impostas a um Chile sob um governo ilegítimo, sem a aprovação das urnas.  A publicação do FMI, agora, constata as previsões dos economistas críticos: a desigualdade prejudica o nível de sustentabilidade do crescimento a longo prazo. Esse não é o primeiro texto publicado pelo FMI com críticas ao modelo defendido por ele no passado. Está longe também de ser um mea culpa. É apenas uma reflexão tardia que em nada mitiga o sofrimento de milhões de pessoas excluídas do crescimento milagroso.